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Levaram-me de manhã para uma sala forrada de azulejos verdes. Já não estou zangada com ela, apenas sinto a sua falta.
Estou mergulhada na minha saudade, nem reparo nos aparelhos estranhos a um canto, perto da marquesa onde me deitam, onde me amarram os pés e as mãos.
Uma enfermeira, de cabelo curto e óculos, com um ar rígido e austero, diz-me secamente, “Mete isto entre os dentes, não deixes cair”. Olho-a nos olhos, os olhos por detrás das lentes espessas que me mostram uma infância de abusos, de dor, de espancamentos brutais por parte de um pai bêbedo. São uns olhos frios, gélidos, de quem não tem dó nem piedade, os mesmos olhos que afogaram um gato bebé, o gozo, sentimento de puro êxtase com que ela, ainda criança, observou o pequeno ser a debater-se enquanto ela o segurava debaixo de água, na ribeira por trás da casa.
Ouço a voz do médico atrás de mim, mas não tenho tempo de perceber o que diz, sinto apenas a corrente eléctrica atravessar-me o corpo, a única coisa que me fica gravada na memória é o olhar de puro deleite da enfermeira. O meu corpo entra em convulsão, não consigo parar de tremer. Sinto o sangue a correr-me do nariz e os meus dentes continuam furiosamente cravados no pedaço de madeira envolto em gaze.
Aplicam-me um segundo choque.
Está tudo negro.
Sinto-os pela primeira vez. O ódio é como um odor pungente que me penetra a alma.
Abro os olhos. Estou a ser arrastada para o meu quarto.
E vejo-os, as suas formas fantasmagóricas coladas ameaçadoramente ao corpo das enfermeiras.
Vejo a cara disforme, com queimaduras nas têmporas, a espreitar pelo ombro da enfermeira dos óculos, com um esgar de ódio e vingança.
Desmaio novamente.
Estou no meu quarto. Mas a tinta das paredes já não está descascada, na realidade cheira a tinta fresca. A cama também foi mudada, é nova.
Uma sensação de pânico invade-me, estou amarrada e não me lembro de nada. Nada da minha vida.
A enfermeira dos óculos entra, está mais nova, sem rugas, mas o olhar sádico é o mesmo. Trás na mão um balde com água, pelo menos soa a água.
Ela dirige-se à cama onde estou amarrada e despeja-o sobre a minha cabeça. Não consigo respirar, a água entra pela minha boca e inunda-me os pulmões. Estou a morrer, sinto-o, mas não há paz, só ódio e raiva. Um ódio mortal.
Acordo aos gritos, banhada em suor, apesar do ar gélido que entra pelos vidros partidos da janela.
Os choques eléctricos. Em vez deixar de ver o passado, passei a vivê-lo, através olhos dos mortos que inundam este hospital.
Mas a memória está cá. Lembro-me. Lembro-me dela e suspiro de alívio.