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Hoje decidiram separar-nos de vez.
Passei por ela no pátio central e ignorei-a. Sabe Deus que foi como se me arrancassem o coração, mas ela tem que aprender. Se continua assim, ficaremos fechadas neste inferno para sempre.
Mas o que é que ela acha que me fazem de cada vez que me levam? É certo que nunca falei nisso, para a proteger de certa forma, não sei se estou errada. Não sei se ela aguentaria saber de antemão o horror que a espera. Dizem que é um tratamento revolucionário, sou submersa em água gelada durante oito horas por dia, dizem que somos esquizofrénicas, que se isto não resultar vão experimentar os electrochoques nela. Nem quero pensar…
É por ela que aguento esta tortura, por ela, para ela não ter que passar por isto.
Aquele temperamento indomável, tão rebelde como os cabelos louros encaracolados, que apesar de penteados e alisados todos os dias, parece que têm vontade própria.
A sua incapacidade de estar calada, e foi essa incapacidade que nos atirou para aqui.
Mesmo mais velhas, mesmo depois de termos jurado que as nossas visões eram só nossas, é mais forte que ela, fala sempre sem pensar!
Como naquele dia, naquele final de Novembro, em que a tia Anastácia, depois de uma doença prolongada, melhorou e toda a família foi visitá-la.
Estávamos juntas, de mãos dadas junto à janela, quando o padre cura entrou no quarto para lhe desejar as melhoras, depois de já lhe ter dado a extrema unção.
Pegou-lhe nas mãos e beijou-as, “Como está a nossa mais devota aldeã? As nossas preces foram atendidas!”, e olhou para a família em redor da cama.
Quando por breves segundos os seus olhos se cruzaram com os meus, apertei-lhe a mão com força, de tal modo que ficou branca, sem sangue entre os meus dedos. Ela olhou-me e viu o meu olhar de terror.
Vi o padre, vi-o a acariciar um jovem rapaz, a beijá-lo nos lábios, a debruçá-lo sobre o altar, a possuí-lo, o rapaz a rebelar-se, a garganta do rapaz a rasgar-se sob a lâmina, o sangue a jorrar sobre o chão da capela, o padre a cavar uma sepultura sob o carvalho grande na ponta do cemitério, o rapaz, que desaparecera há 8 anos, sepultado para sempre, incógnito numa campa rasa.
O padre voltou a falar, “A nossa Dona Anastácia vai durar mais uma década, vão ver!”.
E ela disse, lentamente, como que em êxtase:
“No Natal ela já não estará entre nós. O mal que ela tem é na barriga, e vai esvair-se em sangue.”