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II.

por Neurótika Webb, em 09.07.15

Voltei do exame médico e meteram-me um naco de pão na mão para lhe levar. Agarrei-o contra o peito, como um tesouro, é para ela, a outra parte de mim.

Entrei no quarto e ela estava sentada na cama, de olhar vazio. Estendi-lhe o pão e fiquei a olhá-la, está mais magra, mais pálida, e eu também. É como ver-me ao espelho, mas em negativo, os cabelos loiros como o sol a bater numa ceara madura, caem-lhe pelos ombros, os meus são negros como a noite. Ela olha para o futuro, e eu para o passado. Ela é a esperança dos dias futuros, e eu vivo mergulhada na noite de pecados passados.

Fora isso, “são como duas gotas de água. Iguaizinhas!”, costumavam dizer.

No chão está a fotografia que ela trouxe. Apanhei-a e olhei-a com estranheza. Os nossos olhos sorriam, numa felicidade pura, como que se tivéssemos existido num universo paralelo, onde essa alegria é possível. Já não consigo sequer reconhecer o sentimento.

Mas era assim que nos sentíamos no dia em que tudo começou. Eram os últimos dias de Verão e tinha sido um Setembro chuvoso, nesse Domingo de sol a mãe decidiu ir visitar a campa do avô Ernesto. Na semana seguinte era a missa de um ano e ela queria tudo perfeito. Levámos a criada para ajudar a limpar a campa, “Mas só no dia da missa é que levamos as flores frescas, temos que chegar bem cedo.”, declarou a mãe.

Depois da semana chuvosa, fechadas em casa, só nos apetecia correr e brincar, e não parávamos quietas. Os olhos dela brilharam e sussurrou-me, “Não me apanhas!”, e largou a correr. Corri atrás dela, os nossos gritinhos de felicidade ecoavam pelas paredes da velha igreja, e ela continuava a cantilena “Não me apanhas, não me apanhas…”

“Parem já quietas! Isso são modos de duas meninas se comportarem? Não têm respeito pelos mortos?”, a mãe olhava-nos com um misto de desapontamento e raiva. “Peguem nesse balde e vão ao chafariz buscar água para lavar a lápide. Rápido!”, e virando-se para a criada “Quando uma se magoa, a outra magoa-se logo a seguir, parece bruxedo!”

Peguei no balde, agarrei-a pela mão, com os olhos marejados de lágrimas, e lá fomos cabisbaixas.

O vento levantava as folhas do chão formando remoinhos entre as lápides, adivinhando o Outono que se aproximava. À nossa frente, uma lápide, descoberta pelo vento, emergiu das folhas queimadas pelo sol. Parámos em simultâneo, e com o passo sincronizado aproximámo-nos e pousámos as pequeninas mãos de meninas na caveira, o nosso primeiro vislumbre da morte. Por baixo da tétrica representação, gravado no mármore coberto de musgo, lia-se, “Memento Mori”.

Os nossos dedos deslizaram pelas reentrâncias das letras esculpidas e sussurrámos “Memento Mori…todos temos que morrer”.

Mas ainda não tinham começado os estudos de latim…

 

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publicado às 15:00


32 diagnósticos

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De Petrolina a 09.07.2015 às 17:18

Gostei. Muito.
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De Neurótika Webb a 09.07.2015 às 17:20

Obrigada!
E tu, grávida? está tudo a correr bem? este calor durante a gravidez é do melhor, não é?
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De Petrolina a 09.07.2015 às 17:54

Tudo bem :) o calor ainda não me está a afetar muito...por enquanto. :)
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De Neurótika Webb a 09.07.2015 às 18:51

O meu filho nasceu em Julho, e por esta altura, estava inchada que nem um balão!

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